Um breve texto sobre o Poder
Maquiavel nos ensina que a vida é uma estratégia para alcançar nossos objetivos. Isso é profundamente impactante. A primeira vez que li “O príncipe” de Maquiavel - eu devia ter uns 15 anos, fiquei intrigado. Primeiro, eu era muito jovem... Confesso que articular com um pensador tão complexo já era difícil.
O príncipe, contudo, deve ser lento no crer e no agir, não se alarmar por si mesmo e proceder por forma equilibrada, com prudência e humanidade, buscando evitar que a excessiva confiança o torne incauto e a demasiada desconfiança o faça intolerável.
Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em suas palavras, encontrando-se destituído de outros meios de defesa, está perdido: as amizades que se adquirem por dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, são compradas mas com elas não se pode contar e, no momento oportuno, não se torna possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por um vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada oportunidade que a eles convenha; mas o temor é mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona.
Em segundo lugar, eu estava profundamente imerso no que seria a primeira etapa do Querigma - ou anúncio católico - no grupo de jovens. Pertencia ao movimento católico em Porto Alegre/RS: CLJ - Curso de Liderança Juvenil, onde aprendíamos que "Jesus Cristo é o nosso Líder".
Além disso, fui introduzido ao best-seller cristão "O Monge e o Executivo" de James C. Hunter, que ilustra alguns "modelos" de liderança. Um deles é a "Liderança Servidora", conceito interessante e, na época, não percebi que estava intimamente ligado à tese de Max Weber sobre autoridade. Serviu-me naquela época.
Fiz este parêntese para ilustrar uma dicotomia sempre presente, já abordada em outros livros, que resumirei brevemente: Potestas refere-se ao poder formal e institucional, derivado de uma posição ou título. Em contraste, auctoritas é a autoridade moral e influente, construída através de caráter e ações. Enquanto potestas pode ser imposto, auctoritas deve ser conquistada. Este conceito é essencial. Ou seja, o líder "pop" e "amoroso" é aquele que usa a segunda para garantir sua influência. James C. Hunter nos aproxima da ideia de que a autoridade é construída sobre o caráter, composto por bons hábitos (virtudes).
Aqui, invoco o autor Alexandre Havard, que elaborou uma obra e um programa de liderança baseados nesses princípios em "Virtudes & Liderança". A ideia é que podemos influenciar através de uma autoridade derivada do caráter - ou seja, ser um líder nobre, bom e correto.
E o que isso tem a ver com Maquiavel?
Bom... Para o filósofo pragmático, essa visão parece distante do que encontramos na governança. Maquiavel vê o governo como um jogo, onde o importante é governar, e para isso podemos ser virtuosos, mas não necessariamente. Ele sugere que podemos governar pela força, por artimanhas, por cargos e por estruturas hierárquicas complexas, como contratos sociais com sócios absurdamente egocêntricos.
Então, qual é a solução? Aí que nos complicamos. A religião influencia minha vida, a sua vida e provalvemente a de boa parte das pessoas que você conviverá até o final da sua existência… ou seja - fica explícito o erro ‘‘moral’’ da estratégia maquiavélica. Todavia, Maquiavel está certo em muitas coisas, e uma delas o cristianismo reforça: o ser humano é, muitas vezes, movido por interesses egoístas.
Se ele puder, trairá. Se conseguir, roubará. Se permitir, sabotará.
O cristianismo fala sobre a mancha do pecado original. Leo Trese, em "A Fé Explicada", descreve essa mancha como um "vazio" onde deveria habitar a graça santificante, a virtude, o bem - um espaço que o ser humano opta por deixar vazio, que tomamos como mal - a ausência do bem.
Por isso, como Maquiavel ensinou, eu interpretei que convém que tenhamos uma adaga visível, mesmo que não seja usada com ameaças - mas como um indicativo de força. Isso nos leva a refletir: as pessoas te respeitam por medo?
Talvez, no início, um certo temor seja conveniente. Com o tempo, à medida que a confiança se estabelece, podemos ousar baixar as guardas. "Abaixem os portões", diria um medieval ao permitir que um estranho adentrasse os terrenos mais importantes do castelo.
Será que o medo e a força podem ser usados de forma "caridosa"?
Existe espaço nas relações para o medo? Talvez outra palavra, talvez temor. Talvez a capacidade de mostrar que somos fortes o suficiente para contra-atacar.
Há um recurso (ou seria um apelo?) narrativo que mostra que o herói nunca dá o primeiro tiro, a primeira agressão - ele reage ao agressor com força justa.
Se você é ligado no "mundo pop", conhece a famosa cena do tiroteio no bar de Star Wars, onde Han Solo causou uma “polêmica geek”- ele atirou primeiro em um impasse. Isso nos faz pensar: como pode um protagonista/herói ser o primeiro a agredir?
Interessante, não é?
Diante do dilema do uso do poder, somos confrontados com a nossa responsabilidade social e moral. A capacidade de exercer poder pode nos transformar tanto em heróis quanto em vilões agressivos, dependendo de como e quando escolhemos utilizá-lo.
A agressão inicial pode ser vista como um afastamento da "caridade cristã" ou da liderança servidora. Um líder que adota um enquadramento hostil já se torna uma ameaça, desvirtuando esses princípios.
Vamos tentar dissertar um pouco sobre esse enquadramento hostil - ou demonstração de controle em situações.
Ressalto que esta agressividade não precisa ser violenta... Pode estar levemente presente em um sorriso simpático. Recordo-me de Tolstoi e peço desculpas por ser repetitivo ao citar "A Morte de Ivan Ilitch" em mais um texto, onde o autor descreve um sentimento ambíguo e pendular sobre a relação entre cargo e poder, destacando a vaidade e o prazer do poder.
O próprio serviço de juiz de instrução gerava em Ivan Ilitch muito mais interesse e atração que o anterior. No serviço anterior, o mais agradável era passar, com um caminhar livre, usando o uniforme feito por Charmer, pelos solicitantes trêmulos à espera de atendimento e pelos funcionários que o invejavam, e entrar direto no gabinete do chefe e sentar- se com ele para um chá com cigarros; mas eram poucas as pessoas que dependiam diretamente de seu arbítrio. Essas pessoas eram só os comissários de polícia e os cismáticos, quando ele era enviado em missões; e ele gostava de tratar de maneira cortês, quase camaradesca, aquelas pessoas que dependiam dele; gostava de dar a sensação de que ele, que tinha o poder de esmagar, tratava- os de maneira amistosa e simples.
Naquela época, eram poucas essas pessoas. Mas agora, como juiz de instrução, Ivan Ilitch sentia que todos, sem exceção, até as pessoas mais importantes e cheias de si, estavam em suas mãos, e que lhe bastava apenas escrever as devidas palavras no papel timbrado para que alguém importante e cheio de si fosse trazido até ele na condição de réu ou de testemunha, e, se ele não quisesse prendê-la, a pessoa deveria permanecer diante dele e responder às suas perguntas. Ivan Ilitch nunca abusava de seu poder; ao contrário, tentava atenuar-lhe a manifestação; mas a consciência do poder e a possibilidade de atenuá-lo é que constituíam, para ele, o principal interesse e a atração desse novo serviço. No serviço, propriamente nos inquéritos, Ivan Ilitch assimilou muito depressa o procedimento de afastar de si quaisquer circunstâncias que não se referissem ao serviço e de expressar qualquer processo, por mais complexo que fosse, numa forma tal que o processo só se refletisse no papel em seu aspecto exterior e que ficasse totalmente excluída sua concepção pessoal e, sobretudo, que fosse observada toda a formalidade exigida. Era algo novo. E ele foi uma das primeiras pessoas a elaborar, na prática, a aplicação dos estatutos de 1864. (…)
A consciência de seu poder, a possibilidade de arruinar qualquer pessoa que ele quisesse arruinar, a importância, até na aparência, de sua entrada no tribunal e de seus encontros com os subordinados, seu sucesso perante os superiores e os subordinados, e, sobretudo, a maestria com que conduzia as causas, maestria que ele podia sentir– tudo isso o alegrava e, juntamente com as conversas com os colegas, os almoços e o uíste, preenchia sua vida. Desse modo, a vida de Ivan Ilitch, no geral, continuou a transcorrer como ele acreditava que deveria: de maneira agradável e decente.
Isso me lembra um exemplo da cultura pop, ou melhor, dois, e ambos em um contexto inusitado: um café. Ps: Você não achou que eu citaria Game Of Thrones , né? Seu Cafona.
No filme "Bastardos Inglórios" (2009) - dirigido pelo brilhante Tarantino, temos a cena entre Shosanna e Hans Landa, que pode ser vista como uma "entrevista" de exploração, mas carregada de uma tensão palpável. Sabemos, de antemão, o quanto Hans Landa é um predador traiçoeiro e experiente, responsável pela morte de toda a família de Shosanna. No entanto, ele a aborda com sorrisos, e a força a experimentar algo que ele aprecia, como uma forma de demonstrar sua dominância. A manifestação de poder pode ocorrer através de sorrisos, e o ator Christoph Waltz retrata isso com maestria por meio do sorriso cínico de Landa.
A cena é um exemplo perfeito de como a expressão de poder não precisa ser violenta ou direta; pode ser sutileza, um gesto aparentemente inocente, como oferecer um doce, que na verdade é uma demonstração de controle e manipulação. É interessante observar como o poder e a autoridade podem ser exercidos de formas tão diversas e inesperadas, algo que Maquiavel certamente entenderia bem.
Outro exemplo interessante vem de um filme mais antigo, que revi recentemente: "Dia de Treinamento" (2001), dirigido por Antoine Fuqua. Nesse filme, temos Denzel Washington interpretando o veterano e corrupto detetive Alonzo Harris, ao lado do novato Jake Hoyt, interpretado por Ethan Hawke.
A primeira cena em que ambos aparecem juntos é em um café. Alonzo, após convocar Jake para a reunião, ignora deliberadamente o novato enquanto lê um jornal. Quando Jake tenta iniciar uma conversa, Alonzo o interrompe de maneira abrupta, usando uma abordagem autoritária para desviar a atenção e começar a contar uma história. A peculiaridade dessa cena é que, assim como em "Bastardos Inglórios", há uma manipulação sutil. Alonzo, um policial corrupto e experiente, oferece pagar a conta inicialmente, mas ao final da cena, ao sair do café, ordena que o novato pague com seu próprio dinheiro.
Essa cena é emblemática na demonstração de poder e manipulação. Alonzo usa uma mistura de desdém e autoritarismo para estabelecer sua posição de dominância, deixando claro que ele está no controle.
Assim, a capacidade de "enquadrar" situações revela um poder nas relações, capaz de influenciar e constranger pessoas. Isso pode ocorrer em diferentes contextos, como em um café, uma reunião de trabalho ou em um relacionamento pessoal.
Esse texto pode parecer uma colcha de retalhos, sem uma conclusão clara, e talvez até confunda o leitor. No entanto, o objetivo é ilustrar a distinção entre Potestas e Auctoritas, e como o enquadramento entre os agentes define o exercício do poder.
Em conclusão, poder e autoridade se manifestam de várias maneiras, seja através do caráter e virtudes, como na liderança servidora, ou através da estratégia e pragmatismo, como argumenta Maquiavel. Sugiro ao leitor que reflita sobre esses conceitos, não se limitando ao dualismo, mas considerando a complexidade das próprias situações cotidianas.
Eu realmente acredito que a verdadeira liderança parece ser uma combinação de potestas e auctoritas, sempre com um olhar ferozmente crítico para a ética de sua conduta.








